"[...] Com o rosto colado ao poste, o Desconhecido escutava os ruídos da noite: o tropel e as vozes indistintas dos transeuntes na calçada; a surda trovoada do tráfego riscada pelo trombatear das buzinas e, a intervalos regulares, pelo tilintar das campainhas das sinaleiras.
A cidade parecia um ser vivo, monstro de corpo escaldante a arquejar e transpirar na noite abafada. Houve um momento em que o homem de gris confundiu as batidas do próprio coração com o rolar do tráfego, e foi então como se ele tivesse a cidade e a noite dentro do peito. [...]"
O trecho acima foi retirado da obra "Noite", de Érico Veríssimo, a qual relata a noite de um desconhecido que vaga pela cidade à procura de sua identidade e memórias perdidas.
Em meio ao turbilhão de indagações e acontecimentos - e da forma mais inesperada possível - o Desconhecido por um momento encontra-se, reconhece-se e reinventa-se diante à cidade e ao caos fascinador, confundindo-se com os ruídos, os sopros e os sentidos que nela encontra.
A cidade não é apenas um meio urbano habitacional, industrial ou comercial, mas, outrossim, a continuidade e reflexo da existência humana. O corpo, a razão, a natureza e sensibilidade humanas são refletidos em torres e edifícios, assim como homenagem ou complemento do ser que o está construindo. Quem nesse conglomerado de bulícios nasce talvez possa compreender melhor, o deslumbre que as diversas e coloridas luzes causam, a singela magia de um pôr-do-sol refletido no concreto vertical ou a sensação de ter a cidade como parte do seu eu.
Na procura constante de um "eu", somos todos desconhecidos que usam das lembranças e histórias, fragmentos para construir um futuro que talvez se perca, se enrole, se desatine ou que simplesmente aconteça, mediante ao lugar que sentimos pertencer, em meio a célere e vasta modernidade da atualidade, que se destaca da história assim como uma flor nos oceanos, incitando-nos a buscar, mesmo que desordenadamente, o tão desconhecido "eu".