25 de junho de 2014

Poema da meia noite

          E no final das contas o dia deu em chuvoso em meio à arte de Cheval, Sinclair e Farré....



"O Dia Deu em Chuvoso 
A manhã, contudo, esteve bastante azul. 
O dia deu em chuvoso. 
Desde manhã eu estava um pouco triste. 

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma? 
Não sei: já ao acordar estava triste. 
O dia deu em chuvoso. 

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante. 
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante. 
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante. 
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante? 
Dêem-me o céu azul e o sol visível. 
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim. 

Hoje quero só sossego. 
Até amaria o lar, desde que o não tivesse. 
Chego a ter sono de vontade de ter sossego. 
Não exageremos! 
Tenho efetivamente sono, sem explicação. 
O dia deu em chuvoso. 

Carinhos? Afetos? São memórias... 
É preciso ser-se criança para os ter... 
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro! 
O dia deu em chuvoso. 

Boca bonita da filha do caseiro, 
Polpa de fruta de um coração por comer... 
Quando foi isso? Não sei... 
No azul da manhã... 

O dia deu em chuvoso. "


Álvaro de Campos



''Bombastic Quintet of Eternal Youth'', Michael Cheval

''The Attic'', Alexia Sinclair

''Caminant Sota La Pluja'', Montse Parés Farré

13 de fevereiro de 2013

10 pensamentos sobre liberdade

1) A liberdade é um fato de experiência que não pode ser negado.
 
2) É um sentimento aspirado e desejado pelo homem desde tempos remotos.

3) Porém, à medida que o homem evolui, a liberdade diminui.

4) Parecemos tão livres - mas estamos encadeados, acomodados.

5) Liberdade significa responsabilidade e é por isso que muitos ainda a temem.

6) Hoje a liberdade é defendida com discursos e atacada  com metralhadoras.

7) Cada um tem sua opinião sobre ela, entretanto ninguém tem noção do que ela realmente é.

8) A liberdade não é o fim, é uma consequência.

9) Deveríamos conquistar, acima de todas as liberdades, a do saber, a do expressar, a do debater.

10) E enfim, poder sonhar, realizar, pular e voar para onde a liberdade quiser nos levar.

23 de dezembro de 2012

Tarde emoldurada

Céu ocre na moldura de madeira,
nuvens cinzas em pleno anoitecer.
Folhas caem e incendeiam
na noite que não convém em aparecer.

Sons nos gramados, sons do céu;
quentura de outrora, chuva de verão.
Outono ou veraneio? Não consigo responder.
Vejo somente o ocre na madeira a brilhar.

Ouço o cantar da chuva e o tilintar das folhas
nesta linda velha casa
onde não sei o que é chão e o que é mar.

O vento uiva e devaneio a mirá-lo.
Assusto-me nos flashes e nas luzes,
perco-me no som e na escuridão.

O tempo para, mas a natureza segue a bailar
refletida na lagoa pintada e no ocre,
no ocre da parede e da moldura a exaltar.




2 de dezembro de 2012

A grande era do cupim

por Carlos Heitor Cony

          "Pouco antes de morrer, Antonio Callado foi entrevistado pelo jornal Folha de São Paulo, do qual era um dos mais conceituados colunistas. Foram declarações amargas de um profissional respeitado pela sua trajetória na imprensa e na literatura. Ao fazer a análise do seu tempo, Callado disse que faltava à sociedade brasileira, incluindo todos os seus setores - política, economia, justiça, mídia etc. -, uma "âncora moral".
         Tudo ficava permitido em nome das vantagens legais ou ilegais em todos os meandros da vida social.       No vale-tudo pelo poder ou pelo prestígio, a lei seria a do cão ou do leão, notáveis pela sua voracidade.
         Na escala zoológica, nem todo cão é feroz e há leões que se apresentam em circos, mansamente, para encanto do respeitável público.Ninguém falava ou pensava no cupim. Animal minúsculo, mas não inofensivo, sem direito ao latido ou ao urro, mas capaz de desmoronar um prédio ou uma instituição.
         Estamos na era do cupim - tudo parece bichado. Em crônica recente, com a liberdade da metáfora, comparei o Palácio do Planalto e seus anexos a uma boca de fumo, foco que abastece o noticiário policial.
       Haja nomes para designar as sucessivas e nuncas resolvidas operações da Polícia Federal ou da Procuradoria-Geral da União: Satiagraha, Monte Carlo, Porto Seguro etc. Os relatórios são alterados ao sabor das pressões oficiais ou oficiosas - estas últimas exercidas por todos os que se beneficiam do sigilo da fonte.
        O caso mais assombroso, o mensalão, teve origem na entrevista de Roberto Jefferson a Renata Lo Prete, que não invocou o sigilo da fonte e deu no que deu. Numa CPI ainda em atividade, o relator foi obrigado a tirar referências a autoridades e jornalistas. O cupim trabalha em sigilo." 

4 de setembro de 2012

As ondas e letras do verde Sabiá

Queria mergulhar em um mar de letras,
em um mar de pó pueril;
gozar do tempo ainda não passado;
rir da vida como um eterno Rouxinol.

Rouxinol... rouxinol ou verde Sabiá?
De repente a preta graúna do Ceará
trouxe a notícia de uma terra além mar.
Da terra da Graúna, do Rouxinol e do Sabiá.

Lindos versos passariam
por onde eles voassem.
Gotas de rimas e relatos da onda...
...da onda do mar, das letras da terra além mar.

Vá Gonçalves, José, Mário e Manoel!
Entrelaçados vão voando
para onde as ondas querem lhes levar:
Para o mar de letras no qual eu queria mergulhar.

16 de julho de 2012

Muralhas de Seda e Cetim

As muralhas eram grande na época.
Nada passava, nada ouvia,
nada transbordava, nada defendia.
Vinham exército de todos os planaltos e montanhas para invadí-la,
mas suas torres e ogivas - imensas e destrutivas -
impeliam a invasão, e a cegueira então permanecia.

O concreto enfim foi derrubado, aclamado pela multidão.
A muralha foi cantada por Fallersleben e ecoada pela união.
Guerras e divisões, por favor, não mais.
Era doloroso e a cicatriz ainda não curou,
permanece marcado o corte que, uma vez, a muralha os causou.

Avante, avante! A liberdade chegou!
sem mais muralhas de ferro, apenas pequenas muretas
de palavras, encantamento e heróis.
Rios e cachoeiras vinham - dos planaltos e montanhas guerreados -
permanecer empoleirados no muro que os continha
do levante, da opinião, da palavra e da euforia.

As tropas, nas alegrias que Caetano cantou,
levavam a muralha para mais longe.
Quando as tropas cessaram, a muralha se calou
do cântico glorioso que o soldado a ensinou.
Por sob a mureta do muro da muralha vinha a cortina
leve e graciosa como o ferro fundido,
como a sirene nas ruas, como o corpo abatido.
Não era de ferro, de concreto ou de retaliação, mas era feita de mera seda e cetim.

A nova cortina escode aquilo que não quer ver,
brinca por entre os homens como as éforas de Camões e como as sereias de Andersen.
Alguns a abrem, outros a fecham e ainda outros mais espiam por entre ela.
Vêem do outro lado um novo mundo, ditado por poucos sábios.
Sentem apenas o cheiro do abismo e da opulência,
do gasto e da irreverência.

Percebem ademais, os iluminado da caverna de Platão,
que a cortina é verde, como a gramínea que há no chão.
Que seda será essa, de colorido tão poderoso?
E que cetim será esse, com rostos póstumos tão pomposos?

Chegam mais perto e percebem que a leve cortina com eles fala,
soletra números e enumera palavras.
São ordens e perseverança de um ciclo interminável.
São palavras pesadas de discursos,
imperativos férreos da aliança,
o concreto fático da separação.

São números que vão e voltam,
no tempo e na destreza,
que provam que a muralha permanece lá
- não mais rígida e de tijolos feita -,
mas sim, hipnotizante e cobiçada, como o mais belo e raro cetim;
e resplandecente, como a mais macia e delicada seda.

6 de junho de 2012

Uma Campana Alegre, IX

         Qualquer semelhança com a realidade brasileira não passa de mera coincidência transcrista por um 'singelo' escritor português do século XIX.

           "Há muitos anos que a política em Portugal apresenta singular estado:
          Doze ou quinze homens, sempre os mesmos, alternadamente possuem o Poder, perdem o Poder, reconquistam o Poder, trocam o Poder...O Poder não sai de uns certo grupos, como uma pela que quatro crianças, aos quatro cantos de uma sala, atiram umas às outras, pelo ar, num rumor de risos.
           Quando quatro ou cinco daqueles homens estão no Poder, esses homens são, segundo a opinião e os dizeres de todos os outros que lá não estão - os corruptos, os esbanjadores da Fazenda, a ruína do País!
            Os outros, os que não estão no Poder, são, segundo a sua prórpia opinião e os seus jornais - os verdadeiros liberais, os salvadores da causa pública, os amigos do povo e os interesses do País.
          Mas, coisa notável! - os cinco que estão no Poder fazem tudo o que podem para continuar a ser os esbanjadores da Fazenda e a ruína do País, durante o maior tempo possível! E os que não estão no Poder movem-se, conspíram, cansam-se, para deixar de ser o mais depressa que puderem - os verdadeiros liberais e os interesses do País!
          Até que enfim caem os cinco do Poder, e os outros, os verdadeiros liberais, entram triunfantemente na designação herdada de esbanjadores da Fazenda e ruína do País; em tanto que os que caíram do Poder se resignam, cheios de fel e de tédio - a vir a ser os verdadeiros liberais e os intersses do País.
         Ora, como todos os ministros são tirados deste grupo de doze ou  quinze indivíduos, não há nenhum deles que não tenha sido por seu turno esbanjador da Fazenda e ruína do País...
            Não há nenhum que não tenha sido demitido, ou obrigado a pedir a demissão, pelas acusações mais graves e pelas votações mais hostis...
         Não há nenhum que não tenha sido julgado incapaz de dirigir as coisas públicas - pela Imprensa, pela palavra dos oradores, pelas incriminações da opinião, pela afirmativa constitucional do poder moderador...
            E, todavia, serão estes doze ou quinze indivíduos os que continuarão dirigindo o País, neste caminho em que ele vai, feliz, abundante, rico, forte, coroado de rosas num chouto tão triunfante!"

                                                                                                                    Eça de Queirós